(Foto: www.cuerpospintados.com)
Sou o corpo mole e o corpo firme, as muitas curvas e os ângulos pontiagudos. Sou a forma que se imagine, de planícies e montanhas com cheiro de perfume, roupa de baixo transparente e saltos de todo tamanho. Sou sussurro, barulho e silêncio. E por ser mulher, sou campo e estrebaria a um só tempo - lugar de procurar abrigo em dias de chuva, lugar de correr, cabelos ao vento, em dias de pura loucura.
Sou a espátula, o creme das tintas que misturo a algumas gotas de óleo de linhaça, o perfume de terebintina nas narinas, as mãos sujas de todas as cores, e a trama de tecido que embebo em minhas misturas, enquanto em minha mente o quadro pintado se descortina muito antes do último traço. Sou o contato do pincel no pano, o movimento lento e metódico das cerdas sobre as fibras, acariciando cada pequena linha, manchando de vida a tela em branco.
Sou a poesia das tardes chuvosas em que o peito se fecha em dores, como se fecham no céu as nuvens. Sou a poesia que leio e sou a que escrevo. Sou as horas que voam enquanto os dedos teclam computadores, vertendo letras e versos que vejo na minha alma e na alma de todos os homens que ao verbo torno. Sou o silêncio entre as frases, o ponto. Sou a sentença entre aspas que sai da boca dos personagens. Sou o comentário, a síntese e a antítese de meus heróis imaginários. Sou o fim, mas também sou o título. Sou as teorias de vida que persigo e que coloco em palavras lançadas ao vento.
Sou o ventre que abriga nove meses o feto. A mão sobre a lua da própria barriga, enquanto os pezinhos do filho mexem sob a pele rija. Os líquidos que fluem, nutrindo o milagre. A sincronia de dois corações num só corpo que batem. Sou o berço e a mortalha. O peito que entrega o leite, a carícia na testa da criança, as noites em claro. Sou o cordão umbilical e a tesoura, o primeiro rosto amigo e o último consolo.
Quando amar em gestos, palavras e cores não me cabem, sou as teclas do instrumento, o ranger dos pedais, as cordas que ressoam, a vibração no ar. A pausa entre os compassos. Sou os acordes graves e os trinados. Minh’alma um arpejo cadenciado, seguido do estrondo dos meus desejos, da calma depois do orgasmo. Sou a música que ouço, de todo o estilo, sou a música que crio, aquela que leio na partitura invisível. Sou o ritmo que muda, como mudam as marés. As sinfonias que componho, o instrumento, num só.
Sou nos homens que amei a outra face, o complemento inteiro, o grito interrompido, a dor no peito. Mas sou também o remanso, o carinho que tranqüiliza, o leito. A égua no cio, indomada. Sou adestrada. Os dedos que correm pelo corpo, a língua molhada. Sou o sussurro seco e a voz engasgada. As unhas cravadas nas costas, a pele rasgada. Sou o cheiro no ar do quarto, nas pernas entrelaçadas, das ancas que me cavalgam, sou sela que fica, sou ventania que passa. Boca noutra boca, a alma na outra. A gota de lágrima que desce, pelo rosto suado, quando dois são um.
E se não danço a dois, sou desvairada. Danço o corpo leve, a alma solta. Dança sincronizada, sapatilha gasta, como bem gastas as mil horas em frente a uma barra, corpo em riste, mente treinada, na vontade férrea de romper os limites do ar, fazer do espaço um barco, onde braços e pernas são levados, além das possibilidades dos outros mortais. Rompendo os músculos à exaustão que é êxtase, que só compreende quem se entregou ao vício, delicioso e mágico, de viver bailarina, de palco em palco, coreografando no corpo, seu e dos outros, aquilo que mil palavras não pintariam e que a música acompanha em compasso, por vezes rápido, por vezes lento.
Sou do tempero a haste, sou todos os cheiros dos pratos que invento com o que encontro nas cozinhas que visito. Sou os sabores que se descobre a cada mordida, ora distintos, ora uma mistura que confunde o paladar e atiça os sentidos. Sou as cores das travessas sobre toalhas brancas, o vinho derramado, as taças enfileiradas. Sou o ritual da boa mesa que sirvo, os talheres postos, a sobremesa. Sou o quente e o frio da calda sobre o sorvete que derrete na boca e saliva água.
Sou, enfim, nas línguas que falo a minha Babel de tantas culturas e de tanta gente interessante que conheci na vida. Sou o respeito pelo próximo e pelo distante. Sou a força do amor globalizando. Sou as idéias que correm entre elas. A abundância dos negócios que promovo. Sou a colaboração, onde havia concorrência. Sou concorrência, onde havia tolos.
Sou tudo que é belo. Sou tudo que amo. E quanto mais amo, menos sou e mais estou passando.
Só saberá quem sou, de fato, quem me trouxer em si mesmo em completude... Viver intensamente todos os sentidos: cores, sabores, ruídos. E experimentar tudo que é possível, pondo para fora todos os anjos e também os demônios. Experimentando da arte todo manifesto. Experimentando do corpo toda a expressão.
Sou a manifestação do belo na figura da mulher. Simplesmente Amanda, eu sou.